29 março 2015

Sobre a lista de pedófilos

Em Novembro de 2009, o Expresso escreve um artigo com o título "Taxa de reincidência dos pedófilos chega aos 80%": "A probabilidade de reincidência é muito alta e, segundo alguns estudos internacionais, chega mesmo aos 80 ou 90%", afirma Mauro Paulino, psicólogo clínico especializado em Medicina Legal e Ciências Forenses e autor da obra "Abusadores Sexuais de Crianças: A Verdade Escondida".

A 25 de Março passado, mais de cinco anos depois, Mauro Paulino desmente essa notícia do Expresso, no DN: "Talvez tenha sido eu que me expressei mal. E recentemente num debate na TVI24 alguém voltou a referir o meu nome como fonte dessa taxa. Até me ligaram do Instituto de Apoio à Criança para confirmar". O psicólogo ficou tão perplexo que resolveu procurar no livro a percentagem citada. "E só me apareceu com esse número a média de abusos intrafamiliares".

Nas respostas ao DN, o ministério da Justiça insiste nos "80 ou 90%", citando Mauro Paulino, e até recomenda o aprofundamento do tema com Anabela Neves.

Esta médica afirmou ao DN "não conhecer qualquer taxa semelhante à citada pela ministra". 

Em Dezembro, passado, ao Público, Anabela Neves afirmava:
Que percentagem dos predadores são pedófilos? 
Uma percentagem bastante substancial. Destes pedófilos, 70% têm outras parafilias, como o exibicionismo ou o voyeurismo. Há os que procuram ajuda psiquiátrica e por isso não chegam à acção. Mas são uma percentagem pequena. (...)

Muitos predadores sexuais não são reincidentes. Portanto, mesmo que haja uma lista, será sempre muito incompleta. 
Sempre.

Quão incompleta? 
Vamos lá ver: há um estudo feito nos Estados Unidos com 9596 indivíduos condenados por abuso sexual de menores. Saem da prisão e 5,9% reincidem nos primeiros três anos.

Ou seja, a lista há-de conter 94% de pessoas que não vão reincidir. 
Nos primeiros três anos!

No sábado, 28 de Março, o Expresso retoma a análise do DN e afirma que "Ministra manipulou dados sobre pedofilia" - que eram também os dados no Expresso em 2009... O Ministério da Justiça respondeu que o artigo "não corresponde à verdade, tendo o Semanário, senão manipulado os dados que lhe foram enviados, pelo menos interpretado mal uma matéria que desconhece". O Expresso já emitiu uma nota sobre o desmentido.

Mas algo curioso no comunicado enviado ao Expresso é a citação: "A pedofilia tem como características a reter (e citamos, DSM-IV da American Psychiatric Association)"...

Desde 2013 que existe o novo DSM-5, porquê ir buscar a versão anterior do "manual das desordens mentais"?

Será porque o DSM-5 contém actualizações que favorecem mais o lado clínico do que da justiça? "The distinction between paraphilias and paraphilic disorders is one of the changes from DSM-IV that applies to all atypical erotic interests. This approach leaves intact the distinction between normative and nonnormative sexual behavior, which could be important to researchers or to persons who have nonnormative sexual preferences, but without automatically labeling nonnormative sexual behavior as psychopathological. This change in viewpoint is reflected in the diagnostic criteria sets by the addition of the word disorder to all the paraphilias. Thus, for example, DSM-IV pedophilia has become DSM-5 pedophilic disorder".

Em Outubro de 2014, em "Abjecção", Pacheco Pereira alertava precisamente para esta questão: "O grande argumento a favor de um registo de pedófilos é o carácter compulsivo do crime, e o risco da sua repetição. Mas se é assim estamos perante algo que é da ordem da doença e deve ser tratado como uma doença. Acresce, que não vejo muitas estatísticas a apoiarem as afirmações da Ministra sobre a reincidência em Portugal, tanto mais que o contexto conhecido da maioria dos crimes de pedofilia em Portugal é o familiar."

Um estudo de 2008 já apontava para a dificuldade entre psicopatologias e reincidência, quando investigadores das universidades de Lisboa e da Lusófona apresentaram uma "Caracterização psicológica de uma amostra forense de abusadores sexuais". 

Diziam então: "Pode-se concluir que os abusadores sexuais de crianças presos demonstram ter níveis relativamente altos de psicopatologia, nomeadamente uma maior perturbação emocional, dependência, timidez, introversão e tendem a responder de uma forma mais reservada que os homens da população normal. A psicopatia, se presente, é um forte preditor de elevada perigosidade do indivíduo, embora não seja consensual que seja preditor forte da reincidência relativamente a crimes sexuais (e.g., Porter et al., 2002; Quinsey & Lalumière, 2001) dada a relação complexa existente entre psicopatia e crimes sexuais. Não é actualmente claro se estas características psicológicas são atribuíveis, pelo menos em parte, às vicissitudes da reclusão dos arguidos dado que raramente os abusadores sexuais de crianças foram comparados com grupos controlo adequados, nomeadamente criminosos não-sexuais da mesma instituição (Okami & Goldberg, 1992; Quinsey & Lalumière, 2001; Seto, 2004)".

Em resumo, a justiça apoderou-se de um assunto que podia/devia (?) estar no campo clínico e tenta justificar esta apropriação com técnicos do "outro lado", que a desmentem. A justiça continua impávida, porque o que quer é a lista.