22 janeiro 2012

Ainda a #pl118

A proposta de lei 118 do Partido Socialista já foi bastante dissecada e a sua autora já se meteu em suficientes embrulhadas para a tentar justificar, sem sucesso. Mas, quase duas semanas após terem surgido as principais críticas, não vi ainda uma única proposta alternativa à #pl118.
Em síntese, os críticos (alguns dos quais se assumem como potenciais autores) criticam, criticam, mas não respondem a duas questões básicas:
1) os autores devem ou não ser remunerados pela cópia ilegal das suas obras?
2) se a resposta é afirmativa, como deve essa remuneração ser realizada?
A discussão nacional sobre o assunto ocorreu no momento em que os EUA discutiam o SOPA/PIPA e, curiosamente, quase se ouviu falar mais disto do que da #pl118 nos media. Mas a proposta norte-americana é interessante porque mostra como os detentores da gestão dos direitos de autor conseguem fazer “lobby” para que os seus interesses sejam defendidos ao nível legislativo – lá como cá.
Facto curioso dos tempos que temos é que são muito mais os jornalistas de tecnologia, e menos os de cultura, que se preocupam com estas questões. Não é uma crítica, é uma constatação.

SOPA
O SOPA é (foi e será, já que há-de voltar) interessante porque permite recolocar a questão sobre a pirataria digital em termos básicos: estão as entidades defensoras dos direitos de autor a tentar obter ganhos sobre uma propalada pirataria que lhes deu cabo do negócio quando não só elas não conseguiram re-inventar o seu negócio como apresentam dados insustentáveis?
Um exemplo: “There’s no evidence that the United States is currently suffering from an excessive amount of online piracy, and there is ample reason to believe that a non-zero level of copyright infringement is socially beneficial. Online piracy is like fouling in basketball. You want to penalize it to prevent it from getting out of control, but any effort to actually eliminate it would be a cure much worse than the disease.
Much of the debate about SOPA and PIPA has thus far centered around the entertainment industry’s absurdly inflated claims about the economic harm of copyright infringement. When making these calculations, intellectual property owners tend to assume that every unauthorized download represents a lost sale. This is clearly false. Often people copy a file illegally precisely because they’re unwilling to pay the market price. Were unauthorized copying not an option, they would simply not watch the movie or listen to the album
”.
Obviamente, “This is not to say that we should have no copyright law or that there should be no penalties for piracy. Used book stores may slightly depress sales of new books, but they don’t threaten to destroy the entire publishing industry”.
A questão é que a indústria do direito de autor mente (e até esconde) o que devia ser clarificado: “The International Intellectual Property Alliance—a kind of meta-trade association for all the content industries, and a zealous prophet of the piracy apocalypse, released a report back in November meant to establish that copyright industries are so economically valuable that they merit more vigorous government protection. But it actually paints a picture of industries that, far from being “killed” by piracy, are already weathering a harsh economic climate better than most, and have far outperformed the overall U.S. economy through the current recession. The “core copyright industries” have, unsurprisingly, shed some jobs over the past few years, but again, compared with the rest of the economy, employment seems to have held relatively stable at a time when you might expect cash-strapped consumers to be turning to piracy to save money”.
Nem todos concordam com esta visão, embora não apresentem dados, como o baixista dos Guns N’Roses: “When it comes to creative industries, we're not talking in the hypothetical. Recording studios all around the world have had to close. So have record stores. Movie studios have suffered. Many, many jobs have been lost. Many peoples' livelihoods have been affected. The people who make or who have made money from record sales are not the "bad guy," the pirater and the stealer are. Period. So, where's the public outcry?
É verdade, o fecho das lojas de discos ou dos estúdios de edição musical - as primeiras pela digitalização e os segundos pela concentração. E não há uma crítica pública forte aos que roubam e fazem pirataria. Mas o mundo mudou e o direito de autor está prisioneiro de tempos passados. O iTunes demonstrou isso e até a Associação Fonográfica Portuguesa já o reconhece: “não vemos a Internet como uma ameaça”.

Pedro e o Lobo
A cultura, o copyright e a cultura do copyright têm uma forte influência norte-americana mas vários países estão a reconsiderar esta posição. Veja-se a Austrália: “The Canberra Wikileaks cables revealed the US Embassy sanctioned a conspiracy by Hollywood studios to target Australian communications company iiNet through the local court-system, with the aim of establishing a binding common-law precedent which would make ISPs responsible for the unauthorised file-sharing of their customers”.
Mas o que perturba é ver como os EUA legislam internamente. Há dias, o Supremo Tribunal norte-americano rejeitou uma queixa apresentada em 1994 por um professor e maestro que pretendia continuar a usar obras de autores estrangeiros. “The scholar is Lawrence Golan, a music professor and conductor at the University of Denver. He argued that the U.S. Congress did not have the legal authority to remove works from the public domain. It did so in 1994, when the Congress changed U.S. copyright law to conform with an international copyright agreement. The new law reapplied copyright to millions of works that had long been free for anyone to use without permission”.
O advogado de Golan afirmou que “the decision would greatly increase the number of symphonies that the professor, and artists around the country, "are now for all intents and purposes unable to perform and record because the [permissions] fee makes it infeasible"”.
O próprio “Golan had argued that taking works back out of the public domain would hinder creativity by making artists more cautious about remixing or otherwise using works, fearing their status could change in the future in a way that required payment to copyright holders. More broadly, academics have expressed concern that upholding the 1994 law would make it much more difficult to write books or assemble course readings without having to deal with a host of legal hurdles—or just prohibitively expensive fees—to avoid violating copyrights”.
Ou seja, Golan não pode dar a ouvir aos seus alunos qualquer obra de um poruguês sem pagar direitos. Quem fica contente com isto? “Copyright holders and other owners of content, meanwhile, applauded the ruling. The Motion Picture Association of America, for instance, issued a statement saying that it is "pleased that the Supreme Court has again ruled that strong copyright protection is the 'engine of free expression' and fully consistent with the First Amendment".
Algo está errado no mundo do direito de autor quando se aplaude que alunos não possam ouvir obras estrangeiras sem que a universidade pague direitos. Os EUA têm o “fair use”, eu sei, mas Golan sabe muito melhor do que se fala: “Golan told the high court that it will not longer be able to perform Prokofiev’s Classical Symphony and Peter and the Wolf, or Shostakovich’s Symphony 14, Cello Concerto because of licensing fees”.
Ah e coiso e isso é nos States. É, será?

SPAs
Em Novembro de 2006, na apresentação da “PassMúsica, marca criada em parceria pela Cooperativa de Gestão dos Direitos dos Artistas Intérpretes ou Executantes (GDA) e pela Associação para a Gestão e Distribuição dos Produtores (Audiogest)” foi explicitado que “o projecto pretende "licenciar todas as entidades que, na sua actividade utilizam música gravada, retirando disso valor acrescentado para o seu negócio", disse Carlos Pinto, coordenador do projecto”, ao DN.
Uma escola de música retira “valor acrescentado para o seu negócio”, como Golan bem sabe.
E os autores, recebem o quê? Nesse mês de 2006, segundo o Público, a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) era “uma cooperativa que representa actualmente cerca de 20 mil associados (650 dos quais são cooperantes e só metade destes podem ser eleitos). Gere 40 milhões de euros em cobrança de direitos de autor. E a música é, sem surpresa, o sector mais representado, com cerca de 70 por cento do conjunto dos autores”.
Em tempo de eleições, os candidatos destacavam “a não distribuição pelos autores de parte das verbas que entraram na SPA entre 2003 e 2005: dos 108 milhões de euros cobrados pela cooperativa a terceiros (cerca de 36 milhões/ano), foram distribuídos pelos seus mais de 20 mil associados cerca de 69 milhões, restando nos cofres da sociedade quase 40 milhões”.
Na sua última revista (Dezembro de 2011), a SPA recorda que “em Portugal, após vários adiamentos e vazios de decisão, está anunciada para meados do próximo ano a entrada em sede de debate parlamentar da nova Lei da Cópia Privada, que representa um valor superior a 6 milhões de euros por ano para os autores portugueses. Cada ano passado sem a realização dessa cobrança representa um prejuízo incalculável para os criadores nacionais e para a SPA”.
No relatório e contas de 2010, refere como “apesar da crise”, teve um resultado positivo de quase 750 mil euros, com “um aumento no volume das cobranças” de mais de 2,2 milhões de euros (mais 6,21% do que em 2009).
Num recente comunicado aos cooperadores, sobre a cópia privada, a SPA salienta que “também se tem batido para que a remuneração em relação aos suportes se aplique a todos os que permitem a gravação de obras, nomeadamente iphones, ipods, etc, mas, e essencialmente, que a remuneração tenha em conta não o tipo de suporte mas a capacidade de gravação, coisa que com a Lei actual não existe”. A SPA lá sabe contra o que se bate mas quer dinheiro de iPhones? Era de homem, ir ter com a Apple… Brinco mas o essencial é a segunda parte, em que visa não o suporte mas a capacidade de gravação. É uma proposta perigosa porque penaliza quaisquer negócios legítimos que tenham capacidade de gravação e de streaming de músicas, por exemplo, mas também de filmes.
E é tanto mais perigosa quanto vai ao arrepio do que a Comissão Europeia quer quando aponta que “new online business models can emerge in Europe with a solid legal certainty for providers and consumers. We want to enable creators to offer their works over the internet and protect them against the theft of their works”.
Nesse sentido, a Comissão “will facilitate licensing of music and other works by establishing a level playing field in the single market for collective management of rights. We are working on a proposal for this spring”.

Escutar a audiência
SPA, porque não esperar pela Comissão Europeia? Se “a mudança política operada a meio do ano de 2011 comprometeu a desejável entrada em vigor que um diploma tão importante como a Lei da Cópia Privada” e se “durante o ano de 2012, a SPA não abrandará a sua intervenção junto das instâncias do poder político, com o objectivo de assegurar a concretização legislativa da Lei da Cópia Privada, da nova legislação do combate à pirataria”, porque não esperar e, entretanto, ouvir os utilizadores?
Permitam-me insistir: reparem no vosso relatório e contas de 2010 e nos valores que cobraram nas “novas tecnologias”: quase 450 mil euros de “Internet e toques de telemóveis”. Deixando de lado o facto de, com a lei da cópia privada, cobrarem pelo armazenamento nos telemóveis e ainda pelos toques nos mesmos (dupla tributação, porque não posso ter toques sem os armazenar...), reparem como esses valores se aproximam dos cobrados, por exemplo, na publicidade audiovisual. O mundo mudou, porque não mudam vocês?
Querem fazer algo útil? Usem o vosso auditório para ouvir os que estão contra e a favor da #pl118, algo que a Assembleia da República já devia ter feito. Revelem o que está a ocorrer na Comissão Europeia. Aproveitem para actualizar e melhorar uma proposta de lei que é do século passado. [E ouçam os artistas, claro - como estes, num texto que só descobri depois do post publicado.]