18 dezembro 2011

Os novos gurus da dívida

Primeiro, surgiram os esclarecidos economistas a explicar que Portugal devia crescer pelo crédito. Seguiram-se outros iluminados economistas a explicar porque o país se endividou. Entre as dúvidas de pagar ou pagar (a dívida), aparecem agora os gurus alternativos, saídos de um documentário e das políticas que nos enterraram para onde estamos.
A Auditoria Cidadã à Dívida Pública reuniu este fim de semana para ver se pode avançar nesse desígnio. Este sábado, criaram uma comissão de 44, de um total de 700 presentes (na sexta à noite, dificilmente lá estavam 120, apesar dos sentados no chão e dos que entravam e saíam sem interesse nos oradores…). Como couberam todos?
O que choca nesta iniciativa da sociedade civil é ir buscar gente que participou no embuste do crescimento da dívida. Sejamos claros, políticos. Gente que normalmente (ia a dizer conspurca mas era uma generalização gratuita), gente que normalmente tem ideias feitas e interesses… políticos. Um exemplo? Ana Benavente, porque foi a primeira oradora na sexta-feira.
A senhora, que não conheço de lado nenhum e pela qual não nutro qualquer ódio ou estima, esteve 10 anos no Parlamento até 2005 e, como se o assunto lhe tivesse passado ao lado, alega agora que “a crise é política”, que “chegámos aqui sem dar por isso”, que “a pobreza magoa, as pessoas não são números” e que não devem ser vistas como “capital humano”. E eu concordo, em absoluto. No workshop de sexta-feira (porque aquilo não foi debate e muito menos "em profundidade"), Benavente elucidou ainda que hoje “não se luta por um salário, pede-se um empréstimo bancário”, numa via de “grande enriquecimento pelo grande endividamento”.
E “onde estamos”? No meio de “uma forte campanha de despolitização”, com “uma esquerda dividida” e uma “direita a uma só voz”. Acho que foi nesta altura que Francisco Louçã entrou na sala, com o seu sobretudo à Freitas do Amaral.
Onde estávamos? Que a “dívida serve de controlo social das pessoas”, de “controlo dos pais sobre os filhos e o contrário também”, e que os meios de comunicação social contribuem para “estarmos prisioneiros de quem e porquê?”
A ex-deputada do PS considerou que “a distância entre eleitores e eleitos nunca foi tão grande”, que estamos perante “um golpe de Estado e é preciso agir. O que fazer? É preciso ocupar o espaço da cidadania”.
Ouch! O meu aplauso mental saltitou para onde estava a senhora antes das eleições que afastaram o seu partido do poder e prosseguiu quando revelou que “sem utopia, teríamos ficado para sempre escravos”. E assim continuei, aos saltos, quando (re)lembrou o artigo 37º da Constituição sobre o soarista direito à indignação e não só (é mais sobre a liberdade de expressão e informação mas qualquer pessoa que invoca hoje em dia a Constituição merece aplauso).
Enquanto digeria lentamente o espaço da cidadania, a senhora atirou-se à auditoria cidadã, “feita por uma comissão de especialistas e não especialistas, independente” e que não prescinda das almas do Tribunal Constitucional e de outros (que basicamente falharam na sua prestação pública no passado, digo eu), porque é preciso obter dados e “os números devem estar ao serviço da cidadania”, até porque “o dinheiro do Estado é o nosso dinheiro”.
“Independente”. Foi o termo que fixei, achando que nessa altura ela ia abandonar o palco. Erro meu. Afinal, lembram-se de como Ana Benavente disse no início da sua intervenção que a crise era política? Pois a rematar atirou que “a re-estruturação da dívida é política”. Quem é que dizia que tudo era política? Numa lembrança da ex-deputada, “esta merda dos partidos é que divide a malta, pá”.

Debtocratas
Éric Toussaint e Costas Lapavitsas afinaram pelo mesmo diapasão que já tinham no documentário “Debtocracy”.
Para o primeiro, “o FMI aproveitou-se da insegurança dos países perante os mercados para agredir quem precisa de ajuda”. Estamos num “momento histórico na Europa, com várias iniciativas de auditoria da dívida” (França, Irlanda, Espanha ou Itália), considera Toussaint.
“A dívida soberana não se discute, só a margem que se liberta – mas quem faz os sacrifícios? São sempre os mesmos”. Apesar de se falar de uma “pequena taxa sobre os ricos, é o povo que paga pelas medidas de austeridade”. É, disse, “uma política ilegítima” porque não se funda na igualdade, fraternidade e solidariedade.
Este tipo de auditoria cidadã, que não precisa de aceder a documentos secretos porque muita da informação é pública, “é também para mobilizar, é realizada por especialistas mas também por cidadãos”. Nesse sentido, Lapavitsas sintetizou o espírito da coisa: “é um exercício de democracia”. Verdade.
A lógica de Toussaint visa analisar “de onde veio esta dívida, como aumentou, a quem se paga, quais são as condições, respeitam os direitos dos cidadãos”? Neste caminho, os cidadãos podem “obrigar” os governos a olhar para alternativas que não os penalizem em demasia. Ele considera que se podem tratar de “créditos odiosos” mas, como explica no documentário, o termo não pode voltar a ser usado para renegar a dívida. Ou pode?
Isso é que era bom de saber, quando elucida que “as dívidas são bombas ao retardador, para os bancos”. E? “Desafio é enfrentar a situação, com resistência e contra-ofensiva”. Como? Acho que foi nesta altura que Francisco Louçã saiu na sala, com o seu sobretudo dobrado no braço.
Achei bem, e continuei à espera que outros políticos também abandonassem a sala para efectivar a iniciativa cidadã. Ingenuidade minha, ninguém se mexeu…
E é altura de passar a Lapavitsas, com gráficos que demonstram como a nossa competitividade é miserável (e é mais um que usa o termo produtividade sem explicar a qual das várias definições está a recorrer).
Fica-se elucidado de que “a crise é resultado do sistema económico, não do Estado”, dado que os custos do trabalho está a crescer nos países periféricos (Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda) “mas na Alemanha têm sido congelados”. Ah, e perante este país, a produtividade em Portugal “não é famosa” mas é “fraca por falta dos investimentos”.
Calma, mais uma vez, porque vai demorar “25 anos até à resolução das contas dos países da periferia”. Com fraca produtividade, fracas poupanças, enorme consumo, o que é de esperar? “Estagnação a longo prazo, maior desemprego, aumento da dívida, mais emigração jovem”.
Neste cenário, “os países só devem pagar aquilo que podem” e os cidadãos “têm de ser envolvidos em como e quando pagar a dívida”. E delinear uma “estratégia de saída”, que passa por repensar a posição na zona Euro, re-estruturação da dívida, “recapturar” a competitividade e proteger a banca. A sério, ele disse-o e eu não duvido que na protecção da banca estão muitos de acordo – menos eu.

Ideias de mais um guru
Perante isto tudo (e não foi pouco para quem ainda ficou para assistir ao penoso debate público, verdadeiro exercício de cidadania – meu…), quando todos são agora gurus sobre a dívida nacional e para não me ficar apenas por uma intervenção cínica mas também cívica, apresento duas ideias luminosas sobre uma auditoria que, como qualquer outra, deve prosseguir depois para a acção. Assim, e “para desarmar ideias feitas”:
1) o “think thank” de análise da dívida deve ter um carácter técnico e académico, mas sem envolvimento directo de políticos ou de ex-políticos - excepto se solicitados pela Iniciativa. Deve fazer uma análise rápida, em tempo útil, da dívida pública, de como chegámos aqui e do que estamos a fazer. Deve revelar os cargos responsáveis pela desgraça para serem responsabilizados (incluindo judicialmente, para acabar com o regabofe), e deve aconselhar atempadamente, alertar e divulgar o que está a ocorrer com os dinheiros públicos. Não deve apenas analisar o passado, enquanto no presente se repetem provavelmente os mesmos erros;
2) criar uma instituição bancária com accionistas cidadãos interessados. Este deve funcionar com as regras da banca internacional e foco estratégico na compra da dívida portuguesa (e alemã e francesa ou interesses em Angola, Brasil ou China e outros). Deve estar focado num retorno financeiro para Portugal assumir a sua dívida como soberana – isto é, uma dívida refinanciada dentro de portas e eliminada ASAP. Os lucros serão distribuídos anualmente pelos seus accionistas/clientes, libertando as margens necessárias para prosseguir. Ser-lhe-á vedado o financiamento de qualquer partido, nacional ou estrangeiro. Há mais pormenores mas estas são as ideias-chave.
Em resumo, retirem-se os políticos da equação que nos trouxe onde estamos, enfrente-se a crise com as mesmas armas dos nossos inimigos financeiros. Falamos depois.