27 fevereiro 2003

VITAMEDIAS
Questão argumentativa num blog que tenta ser de factos: Devem os media ser escrutinados com mais atenção?
Ponto prévio: é possível polémica saudável na blogosfera sem ser entre os entediantes infames, esquerdistas e derivados, fascinados pela recente descoberta da comunicação "online" e que arriscam a tornar-se em modelos de discussão "pública" semelhantes aos "newsgroups" nacionais, cujo ruído se sobrepõe ao conteúdo?
A questão surgiu derivada de um triângulo de pessoas interessantes (em termos do questionamento da actualidade social e mediática) que leio, concorde ou não com elas: uma opinião no Público, uma pergunta sobre esse ponto de vista e um contraponto.
Começando pelos fins: diz António Granado: "Pacheco Pereira [PP] escreve hoje no "Público" um texto onde, pela milésima vez, diz que é preciso escrutinar a comunicação social [...] Alguém é capaz de me explicar onde é que o homem quer chegar?"
Manuel Pinto argumenta (síntese): "Tal como há uma crítica de TV (de facto: da sua programação), de cinema, de música, etc, porque não há-de existir igualmente uma crítica dos media?" [...] Só me parece que uma tal linha de trabalho dos/nos media não pode ficar circunscrita ao jornalismo. Penso mesmo que tendências de fundo que se registam hoje no campo jornalístico resultam, em grande medida, da "contaminação" de outras variáveis do campo mediático-económico que não podem deixar de ser equacionadas.
Vamos a isto:
1) a crítica de TV não é apenas da sua programação mas do seu conceito, história e mesmo ideologia (veja-se o nem sempre interessante Cintra Torres no Público);
2) existe já e cada vez mais uma crítica implícita dos media, alicerçada em personagens mediáticos (como PP o faz cada vez mais, tal como Edite Estrela o fazia no Expresso no final da era Guterres, acabando como António Granado a questionar-me sobre qual o real objectivo destes textos...). Eles descobriram formas funcionais de interagir com os meios de comunicação social. Ainda há pouco tempo, o próprio PP referia em público como deixava tocar o telefone de manhã quando pressupunha vir de uma certa rádio e não lhe interessava falar ou negociava o "tempo de antena" para dizer o que entendia ter a dizer (para evitar com os "soundbytes" de que qualquer piada sobre sexo na Assembleia da República teria mais tempo de antena em "prime time" do que uma proposta legislativa - o exemplo foi do próprio PP). Por outro lado, há muito que as grandes empresas sabem gerir o seu "timing" mediático, pelo que a questão é se há crítica sobre esses movimentos mediáticos. Não há, digo eu!, concordando com Manuel Pinto de que há tendências de fundo que devem ser equacionadas. A questão é onde: nas universidades, nos media? Qualquer desses meios terá fragilidades próprias...;
3) finalmente, o texto de PP, que vale a pena analisar e argumentar:
"O único produto volátil, perigoso, capaz de envenenar milhões, capaz de levar pessoas ao suicídio ou ao homicídio, individual ou colectivo, que não tem qualquer controlo público, é a comunicação social."
- É um exagero e podia dizer-se o mesmo do antrax, da política em geral ou dos livros, alguns escritos pelo próprio PP;
"Os iogurtes têm de ter prazo de validade, os restaurantes são inspeccionados, o ar das cidades analisado, a água que bebemos purificada, a bolsa regulada, as empresas auditoradas, há controlos de qualidade por todo o lado, menos na comunicação social".
- Curiosamente, PP não fala da política...
"Numa sociedade em que somos protegidos de tudo por um edifício gigantesco de leis, regulamentos e instituições reguladoras, nada nos protege de sermos manipulados, falsamente informados, excitados por campanhas populistas, atingidos pela violência e a exibição agressiva de imagens poderosas e tantas vezes montadas."
- PP esquece que a liberdade de expressão passa exactamente pela diversidade de pontos de vista - embora eu suponha, até por escritos anteriores dele, que PP se refere à TV quando fala da comunicação social... E não é verdade que estamos "numa sociedade em que somos protegidos de tudo" - quem nos protege de legislação aprovada a favor de "lobbies"?!
"A última coisa que defendo é qualquer espécie de censura, prévia, posterior, de baixo, de cima ou do lado. A censura, nenhuma censura, é para aqui chamada. Oponho-me frontalmente a qualquer sugestão nesse sentido seja de que forma for, mesmo através da póstuma proposta do V-chip para as televisões."
- Não há quem defenda a censura nos dias de hoje, principalmente quando se sabe manobrar os meios mediáticos, como o exemplo do V-chip não é póstumo - os Estados Unidos continuam a bater-se por ele. Por cá, não houve reacções tecnológicas ou políticas no momento da sua famosa defesa por Paulo Portas, quando não havia sequer tecnologia para um V-chip - mas era uma boa bandeira de propaganda que todos temeram confrontar!
[...] "A única regulação que tem sentido neste terreno é a auto-regulação e essa deve ser incentivada."
- Claro, mas devemos questionar os exemplos recentes desta auto-regulação: se a TVI foi criticada por inserir factos dos "reality shows" no Telejornal, não vi críticas à RTP por anunciar no Telejornal novos bonecos (caricaturas de políticos) do Contra-Informação - quando ambas concordaram num processo de auto-regulação...;
[...] "A primeira, segunda, terceira e milésima coisa que defendo é um debate público, aberto e o mais amplo possível, contínuo, sistemático, envolvendo todo o tipo de órgãos de comunicação social."
- Uma forma de adiar o debate sério e a tomada de medidas eficazes em Portugal não é o de convocar todos para um debate público?...
"Este debate deve ser societal e estender-se sob formas próprias a todos os principais mecanismos de reprodução social, como sejam as escolas. Nas escolas, insisto há muito tempo, deve-se ensinar a ver televisão, a ouvir rádio e a ler jornais, não podendo continuar a cegueira de um sistema de ensino que de há muito perdeu o principal papel na socialização das crianças para a televisão e que insiste em não a estudar, nem a ensiná-la."
- O "Media Virus" do Douglas Rushkoff explica como a única educação televisiva que o autor teve foi a ver televisão em casa e não se saiu mal.
"O problema principal é que há um escasso debate público sobre a qualidade da comunicação social. Há ocasionalmente surtos de queixas e uma ou outra controvérsia, mas a comunicação social é a mais importante actividade que se passa no espaço público sem ser escrutinada."
- Sem dúvida, sobre o escasso debate público, com muitas dúvidas sobre o segundo ponto, tanto mais que a agenda mediática é comandada pela política e esta pela económica (ver "Mário Soares Alerta para Risco de "Afunilamento da Democracia" "e sublinha que o poder económico é superior ao mediático e ao político").
[...] "Uma é a de que esse escrutínio, a fazer-se, teria de ser feito na própria comunicação social e essa é avessa a discutir-se a si própria."
- Mas em que outro meio ou local a comunicação social foi tão discutida?!?!
"Tende a considerar-se que é pouco elegante que de forma regular no PÚBLICO se pudesse comentar o "Diário de Notícias" ou vice- versa, e muito menos que no PÚBLICO se pudesse criticar o PÚBLICO a não ser nas páginas dos "provedores dos leitores", de cuja eficácia duvido."
- Tal como se considera "pouco elegante" criticar os eurodeputados no Parlamento Europeu!!! É tanto uma questão corporativa como de defesa de emprego - será que PP está disposto a financiar uma "Brill's Content" em Portugal?
[...] "outra coisa é a existência de espaços regulares independentes onde, como há "crítica de televisão" como produto, o mesmo pudesse acontecer em relação a todo o sistema comunicacional".
- Mas se não há comunicação social independente, nem organismos de análise mediática independente, onde é que se vai fazer esta crítica??!!!
"Não me refiro como é óbvio aos estudos académicos sobre comunicação social, que são fundamentais mas cumprem outro papel."
- Nem eu...
"[Mas estes não substituem] uma ecologia de permanente debate e crítica. Só esta tem o efeito de educar o público e introduzir um efeito de rigor e vigilância que melhore o trabalho de edição - que tanta falta faz às redacções - e os níveis de exigência nas redacções."
- Sem dúvida!
"A segunda razão, talvez mais perversa do que os preconceitos corporativos de autodefesa profissional, é a escassez de informação sobre a própria comunicação social. Uma coisa é os órgãos de comunicação social não deverem ser a notícia, mas darem a notícia, outra perceber que eles são a notícia e ninguém a dá. Quer os procedimentos internos, que podem e devem ser escrutinados, como são normalmente os dos órgãos e instituições que actuam no espaço público, até ao conhecimento das redes de poder económico que os possuem, às escolhas, carreira e actividade pública dos que os dirigem ou nele trabalham, aos seu conflitos internos, debates de orientação, métodos de investigação utilizados, problemas de deontologia, tudo isso deveria ser normal matéria noticiosa, mas não é."
- Não é? Permito-me duvidar: quem hoje (se o desejar e se der ao trabalho de pesquisar fontes públicas) não sabe a quem pertencem os grupos mediáticos e o que fazem alguns dos seus responsáveis? Sobre o resto (procedimentos e "conflitos internos, debates de orientação, métodos de investigação utilizados, problemas de deontologia"), não vejo estes tópicos divulgados sobre os políticos ou outros sectores. Tem PP razão quanto aos media? Sim, embora tenha mais se defender o mesmo para os restantes sectores: porque não fala PP do Canal Parlamento, da sua obrigatória visão positiva sobre os deputados, cujas imagens são depois passadas aos canais generalistas? Quando foi a última vez que vimos um deputado a dormir? Eu quero vê-los a dormir e a trabalhar!!!
Devem os media ser polícias, sobre eles próprios ou a sociedade? De certeza que não devem ser ladrões da verdade. Sem dúvida que "o debate sobre tudo isto devia ser tão quotidiano como as notícias", diz PP. "Talvez assim houvesse menos erros por ignorância e desleixo, menos manipulação ideológica e mais esclarecimento."
Todos o desejamos, sem dúvida.
Respondendo à questão inicial, e em síntese, claro que os media devem ser escrutinados com mais atenção pelos media, tal como estes o devem fazer para outros sectores da sociedade: "uma tal linha de trabalho dos/nos media não pode ficar circunscrita ao jornalismo", afirma Manuel Pinto. Mas existe uma crítica dos media frágil tal como é a crítica a sectores económicos e políticos. Reclamar uma linha de acção forte num momento em que há cada vez menos jornalistas nas redacções é sintomático da linha de actuação dos políticos: intervir num sector quando ele está mais fragilizado.